Durante sete dias nosso guia, Pablo Campozani, realizou uma caminhada na Serra Gaúcha de cerca de 200km. O Caminhos de Caravaggio é um roteiro entre Canela e Farroupilha, passando também pelas cidades de Gramado, Caxias e Nova Petrópolis.
Caminhos de Caravaggio é um caminho inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, e foi inaugurado à cerca de 1 ano e meio. Sua marcação é feita através de setas (placas ou marcações) azuis e amarelas – Azuis indicam o trajeto de Farroupilha-Canela e amarelas indicam Canela-Farroupilha (este caminho que é feito pela maioria dos peregrinos e foi o escolhido pelo nosso guia). O trajeto é dividido em 10 trechos (um trecho por dia), mas pode ser realizado em menos dias, de acordo com o caminhante. Em cada trecho há opções (ou opção) de hospedagem e pontos de apoio.
Como este post é um relato, será escrito em primeira pessoa. Com a palavra nosso guia Pablo.
Conheci o Caminhos de Caravaggio logo no seu lançamento em 2019 e sempre tive interesse em realizá-lo, mas conseguir 10 dias livres para percorrê-lo não é algo fácil. Eis que o mês de março de 2021, novamente as atividades comerciais foram suspensas devido ao colapso da saúde pelo coronavírus. Comecei a pensar em alguma atividade que pudesse ocupar o corpo e a mente. Em 4 dias eu montei o roteiro, fiz contato com os pontos de hospedagem e me preparei para realizar o trajeto. No sábado dia 13 de março realizei um teste de 21km com a mochila com todos os itens que levaria comigo por 7 dias em um percurso muito semelhante ao que enfrentaria – subidas e descidas. Em média, os trechos possuem de 15 à 25km, então 21km foi um ótimo teste.
Dia 1
Reservas feitas, planejamento concluído e mochila pronta. Parti para Canela as 5h de segunda-feira, dia 15 de março. Como já havia percorrido o trecho 1 (Canela-Gramado), me direcionei ao centro de informações turísticas de Canela para pegar o Passaporte e o Guia do Peregrino, onde há informações, contatos de emergência, mapas, e claro os locais para receber os carimbos de passagem dos trechos. Informação valiosa que recebi no centro: muitos dos pontos do Guia fecharam pela pandemia (alguns em definitivo e outros temporariamente).
Passaporte em mãos, hora de começar a caminhar. Saída do trecho 2 é no supermercado Rissul em Gramado e segue em direção ao interior da cidade, onde a famosa localidade nasceu. Este trecho é cheio de paisagens lindas porém, ele é feito em sua maior parte em asfalto sem acostamento – cuidado. A caminhada segue em direção ao distrito de Linha Bonita, onde imigrantes italianos (sim, italianos e não alemães) se instalaram e depois para Linha Nova – primeiro distrito de Gramado, fundado por antigos tropeiros. Para o trecho há três opções de hospedagem, e devido a pandemia, apenas uma estava atendendo. Me hospedei na Pousada familiar Sartori, à qual me atendeu de forma muito acolhedora e muita simpatia. Finalizado o primeiro dia de caminhada com cerca de 17km em 4h. Lavei roupa do dia, descansei e jantei com a família.
Ao longo dos trechos vai se descobrindo que está no Caminho. Descobri que haviam dois rapazes um dia na minha frente e que uma menina começaria um dia depois de mim. Era apenas eu no trajeto!
A variação de altimetria é uma constante no caminho, prepare-se para subir e descer muito!
Dia 2
Dia dois de caminhada, hora de fazer um dos trechos mais desafiadores – a descida e subida ao Raposo! Trecho três do caminho sai de Gramado em direção à Vila Oliva – distrito de Caxias do Sul.
Sai da pousada Sartori por volta das 8h da manhã após um belo café da manhã e o dia já estava quente. O percurso até o a Ponte do Raposo, que liga Gramado à Caxias sobre o rio Caí é um dos mais bonitos. O trajeto costeia paredões e morros da região até a chegada ao rio. No rio parei para almoçar e me refrescar nas águas do que viria ser um companheiro por alguns dias seguintes. O trajeto que viria a seguir seria um belo desafio. Me organizei e comecei a caminhar (sentido ao céu), foram 300m de subida em 2km com muito calor. Ao finalizar, cheguei à um ponto conhecido por mim, um trecho simultâneo que um dos roteiros da Top passa – Caminho dos Paredões. O local familiar causou uma boa sensação, mas ainda tinham 13km pela frente.
Nesta região há duas opções do caminho: Capela de Caravaggio Bem-Te-Vi ou a Grota – decidi pelo mais longo, a Grota para conhecer um trajeto diferente. Bem ao final do trajeto da Grota, um grupo enorme de quatis me deu um “alou” no meio da mata. Depois de 7h caminhando e 28km percorridos cheguei à Vila Oliva, distrito de Caxias para ficar hospedado na Pousada da Dona Solange – local simples e de boa comida. Hora de dormir e descansar para o terceiro dia caminhada e seus trechos quatro e cinco.
Ao caminhar sozinho ou com poucas pessoas, preste atenção na mata: pare e faça silêncio! Nestas horas você poderá ver animais silvestres que provavelmente não veria simplesmente passando caminhando.
Dia 3
Eram quatro da manhã da quarta-feira, dia 17 de março, e a chuva começou a cair em Vila Oliva (conforme a previsão). Acordei com o barulho já pensando: “hoje vai ser animado, trecho em obras com chuva”. Voltei a dormir, acordando as 6:30 em definitivo e me preparei para encarar a chuva e os quase 40km que me aguardavam.
Neste dia eu iria percorrer dois trechos do caminho, devido à pandemia o Seminário de Santa Lúcia do Piaí (Em Caxias) não estava aceitando novas reservas, e teria de caminhar o trecho de 15km mais o trecho de 23km até Linha Brasil em Nova Petrópolis.
O primeiro trecho do dia (o trecho quatro) é feito inteiramente na cidade de Caxias, e será totalmente de asfalto em breve. No entanto ele, atualmente, é um lamaçal onde a lama da obra pode chegar até as canelas dos caminhantes nada agradável para caminhar e até caminhonetes 4×4 atolam. Entre o trecho quatro e cinco há um trajeto de 5km que se repete, do Seminário até a via que segue em direção a divisa com Nova Petrópolis, acabei contratando um “uber” para me dar uma carona no trecho repetido e ganhar tempo no dia.
O primeiro trecho do dia não foi nada fácil, a lama entrava nas garras das botas e tornava bastante perigoso caminhar, os bastões foram essenciais! Após chegar à igreja matriz de Santa Lúcia do Piaí e passar pelo Seminário para carimbar o passaporte peguei minha carona e segui para o segundo trecho do dia.
A chuva cessou o trajeto do Vale do Caí se mostrou com nuvens sobre os morros da região até a abertura total do sol (e que sol). Realizei a segunda travessia do rio Caí pela ponte do Pedancino, onde três homens pescavam, e comecei a subida para Linha Brasil em Nova Petrópolis.
Ao fim da subida haviam 2km de caminhada pelo asfalto com acostamento com MUITO mato pela RS-235 até a Hospedaria Bom Pastor, onde passaria a noite e seria muito bem acolhido pela Dona Gleci. Um belo pôr do sol surgiu pela minha janela, era mais um dia vencido! Metade do Caminho estava concluído.
Metade do Caminho: Neste ponto muitos caminhantes acabam desistindo e retornando para casa.
Dia 4
Após a noite de descanso e café tomado segui para o trecho seis e quarto dia de caminhada, inteiramente dentro de Nova Petrópolis. Seria uma caminhada em um local bastante conhecido, pois a Top já havia realizado caminhadas pela região. Lá fui eu em direção à Linha Imperial.
Este foi um trecho mais tranquilo, as altimetrias eram bem menores que os dias anteriores, mas também é um dos trechos com mais asfalto e de pior sinalização, é preciso ficar muito atento!
Foi o único dia que tive companhia durante um período da caminhada. O menino Vitor me acompanho por 1,5km, conversamos, ele quis saber o que eu fazia por ali, me contou um pouco da sua vida e dos seus sonhos, batemos uma foto juntos e cada um seguiu seu caminho.
Outro ponto deste dia foi o reencontro com o Pinheiro Multissecular – Uma araucária, que segundo dizem, tem mais de 1000 anos e é gigante! Fui lá dar um abraço nela! Mas neste dia as bolhas nos pés começaram a incomodar, já era o quinto dia de caminhada e calor é um vilão extremo para os pés e caminhar no asfalto e estradas com muitas pedras causam problemas. Ao chegar na Pousada da Chácara, os pézinhos foram para dentro da piscina para relaxar e recuperar para o dia seguinte.
Para você não carregar muita coisa na mochila, diariamente deve lavar suas roupas e torcer para que sequem durante a noite.
Dia 5
Quinto dia de caminhada, dia de trecho sete! Este seria um dia de trajeto completamente novo para mim, jamais havia passado pela região (na maior parte do trajeto) nem caminhado por perto. Além disso ele me reservava 9km de descida, sim, 9km de descida!
Repeti meu ritual diário: banho, arrumar tudo dentro da mochila, revisar o trajeto, mapear os pontos de carimbo do passaporte, avisar a hospedagem do dia e tomar café….lá fui eu em direção à Vila Cristina, novamente para Caxias do Sul (cidade onde há mais quilômetros no percurso do Caminho). Um grupo de macacos-prego fazia a festa nas árvores logo no início do percurso, provavelmente para seu café da manhã.
O trajeto era lindo, as paisagens iam se mostrando conforme a leve descida se acentuava. Eis o problema: a descida se acentuava e os pés começavam a latejar, em alguns pontos comecei a descer de lado para aliviar as dores nas pontas dos dedos. Quando a descida terminou o calor do meio dia estava muito forte, encontrei a Igreja de São José do Caí (ponto de apoio), tirei as botas e as meias e molhei muito para aliviar um pouco, além de fazer curativos (muitos) nos dedos e dos calcanhares.
Descansei por uns 40 minutos e segui para o trecho mais perigoso de todo o Caminhos de Caravaggio: caminhar no asfalto da BR-116 no entroncamento de Nova Petrópolis-Caxias do Sul! O objetivo era chegar até a Casa Fagundes para poder fazer um lanche e seguir pela outra rodovia a RS-452 em direção a Famiglia Pezzi, local de minha hospedagem. Depois de quase 25km e muitos machucados nos pés cheguei ao fim do trecho, gelo nos pés, estouradas as bolhas….hora de descansar (depois de lavar roupas)!
É necessário reservar as hospedagens antecipadamente, em sua maioria são locais familiares com pouco espaço.
Dia 6
Seguindo a jornada, sexto dia de caminhada e certamente o mais desafiador: trecho oito e nove – 32km!
Depois das bolhas terem machucado muito os meus pés no dia anterior, e a necessidade de fazer dois trechos pela logística, o sexto dia de caminhada ainda reservaria o dia mais quente de toda a semana, mas nada de desanimar.
Me despedi da Famiglia Pezzi após o café, ganhei uma carona para a RS-452 (a propriedade fica 1km fora da rota) e fui dar tchau ao rio Caí na altura do Hotel Fazenda Vale Real. O rio Caí é o coração do Caminho, se enxerga ele por diversos ângulos, morros e pontes, talvez seja o item mais importante de todo o trajeto, até por toda a história de desenvolvimento das localidades.
Passei pelo hotel para carimbar meu passaporte e segui por Nova Palmira, região alemã que deu origem a cidade de Caxias do Sul (sim, alemã, não italiana) com suas casas enxaimel super antigas. Depois de um curto trecho de estrada de terra, voltei para o asfalto por cerca de 5km até a entrada em direção ao Morro da Glória para seguir à Farroupilha – última cidade do percurso todo.
Este trecho foi até difícil de identificar qual cidade realmente se estava (Vale Real que não faz parte do consórcio, Caxias ou Farroupilha). Mas segui caminhando, agora acompanhado pelo Arroio do Ouro e seu incrível vale! Conforme caminhava, o calor aumentava e os pés já latejavam. Cheguei ao final do trecho oito sem maiores problemas – Capela de Caravaggio ou Caravaggeto em Nova Milano-Farroupilha. Tirei um belo cochilo e peguei o carimbo com uma senhora de 93 anos que mora ao lado da capela.
O destino final ainda estava bem longe, ainda havia o trecho nove inteiro e seus quase 16km para percorrer. Enchi minhas garrafas de água no campo do Penharol e segui caminhando até que um dupla de furões (animal como este) cruzaram por mim na estrada, deram uma olhada para minha cara e seguiram para o mato. O vale do Arroio do Ouro seguia me encantando pelo caminho assim como meus pés latejando (muito). Já eram umas 17h e cheguei à uma placa “Casa Colombo – 2,5km”, faltavam apenas 2,5km para fechar o dia. Mas, foram os 2,5km mais longos que já caminhei, era uma subida interminável.
No meio da subida ganhei uma companhia, um cachorrinha me acompanhou por um trecho até bem perto da comunidade São Roque onde ficava a vinícola, local da minha última hospedagem. Em frente à propriedade estava o seu Antônio Colombo arrumando a calçada, dono da vinícola e meu último anfitrião. Ele me explicou como funcionava a hospedagem e me mostrou um pouco da casa centenária de seus avós que eu passaria a última noite do roteiro. Coloquei gelo nas bolhas, haviam sido 33km, jantei e parti para a última noite antes de chegar ao Santuário de Caravaggio em Farroupilha.
Dia 7
Dia 21 de março, novamente segui meu ritual de peregrino e após acertar as contas com o seu Antônio segui para o último trecho de 24km.
O dia amanheceu nublado e a temperatura bem mais amena, havia previsão de chuva e ela não demorou para aparecer. Segui caminhando pelo asfalto por perto de vinícolas (algumas bem conhecidas como a Casa Perini) e o cheiro de vinho (que está sendo produzido) emanava no ar. A chuva veio com força, mas como o trecho era longo não podia esperá-la passar, até por que não parecia que ia passar (e só foi passar bem mais tarde), segui caminhando.
Depois de um longo trecho no asfalto entrei em uma trilha, e sabe como é: chuva+trilha = muito barro! Na saída da trilha uma surpresa: a igreja mais antiga de Farroupilha e mais antiga da Diocese de Caxias do Sul se mostrou no Caminho, de 1886 a Igreja de São José foi reformada e está em ótimas condições.
Enquanto descansava na igreja encontrei um rapaz que havia encontrado em uma caminhada feita pela Top em Bento Gonçalves no carnaval deste ano, conversamos e ele me explicou que o trajeto poderia ser muitos quilômetros menor, tudo bem, não era a quilometragem o objetivo. Nos despedimos e segui para o ponto mais chato de todos os dias: na chegada a zona urbana de Farroupilha o trajeto entra por uma zona muito pobre, aquela “ferida” na cidade.
O objetivo ainda estava longe, passei pela Banca da Paolla para carimbar o passaporte e comprar uma água gelada (uma forma de incentivar as pessoas a participarem do Caminho é comprar algo, por mais simples que seja, é um agradecimento ao apoio) e entrei na RS-122 onde ela é combinada com a Rota do Sol até Polícia Rodoviária. Muito movimento nesta rodovia, é necessário fica bastante atento.
As placas apontavam para a esquerda na direção de uma estradinha secundária e logo vi a primeira placa escrito Caravaggio, faltavam apenas 7km, mas eu sabia que ainda haviam dois grandes desafios: uma descida e uma subida forte. E os pés latejavam!
Eu estava na estrada antiga (como os locais chamam) que tem um asfalto já bem quebrado e depois vira estrada de chão batido, quase trilha com muito verde e praticamente nenhuma casa.
Pausa dramática: Avistei uma placa: 3,5km para o Santuário, era o início da descida e foi o primeiro momento que o coração começou a bater mais forte, estava muito perto! Segui descendo devagar, chovia neste momento e cheguei à uma estrada de asfalto: nova placa 2,3km. Havia chegado a hora de subir, subir o asfalto sem acostamento e molhado. Bastante movimento de carros passando próximo à mim (alguns buzinavam, gritavam incentivando). A dor dos meus pés havia passado, não sentia mais nada, apenas a vontade de chegar ao Santuário. Vi nova placa: 1km para o Santuário. Ali eu parei, já era possível avistar o Santuário, é uma grande reta. Um misto de sentimentos me veio à tona: toda as dificuldades dos últimos tempos, pessoas queridas que perdi, todo o esforço que fiz para finalizar o Caminho, a chegada depois de 7 dias caminhando, enfim…um turbilhão de emoções me encheu os olhos d’água. Segui caminhando meio desligado até que um senhor gritou: “Tá chegando! Parabéns!”. Eu era o único peregrino a finalizar o Caminho naquele dia e apenas o 398° a completar todo o trajeto. Eram 15h e 40min e cheguei ao Santuário de Caravaggio de Farroupilha!
Ao chegar ao Santuário tocaram o sino e o Padre Gilnei veio conversar comigo. Me entregou o certificado de conclusão do Caminhos de Caravaggio e uma medalha de presente, além de brincar comigo por estar me esperando desde as 12h (alguém avisou ele que um peregrino chegaria as 12h, oi???). Gravamos um vídeo sobre minha experiência e toquei o sino (apertei um botão, na verdade). Conversamos sobre possíveis melhorias do Caminho, ele me contou algumas curiosidades do Santuário e do consórcio das cinco cidades.
Foram cerca de 200km em sete dias de caminhada, e o que posso dizer é que foi uma experiência incrível.
Incrível é a palavra que resume bem. Foram sete dias caminhando, e garanto, não foram fáceis. O Caminho está muito longe de ser fácil e a logística que fiz ainda o tornou mais desafiador (recomendo fazer em mais dias). Prepare-se fisicamente e psicologicamente para o tal. Os trechos são lindos, cada um com suas características e belezas. Há muito asfalto e é preciso cuidado nas rodovias. As hospedagens estão muito engajadas para dar suporte aos peregrinos, todos me receberam mutíssimo bem – aqui uma observação importante: a pandemia precisa ser respeitada por todos, dos peregrinos aos locais, máscara é o mínimo exigido e poucos usam. Alguns trechos tem MUITO a evoluir na estrutura ao peregrino. O Caminho é muito jovem, tem muito à evoluir!
Um salve ao Caminhos de Caravaggio! Siga as setas!
Você gostaria de realizar o Caminho? Estamos organizando um grupo para o o período de 24 de outubro à 01 de novembro. Saiba mais aqui e manifeste seu interesse em juntar-se ao nosso grupo.
Conheça as caminhadas oferecidas pela Top.
Sobre o autor:
Pablo Campozani, coordenador da Top Trip Adventure.